O governo quer vender os Correios para coibir a corrupção, mas antes tem de descobrir os esqueletos da estatal
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Criado em 1663 na fase do Brasil Colônia e elevado à condição de estatal federal em 1969, os Correios enfrentam duas frentes de problemas no presente: o operacional e o passivo, de tamanho desconhecido. Do ponto de vista do negócio, a estatal vive para pagar suas contas. Em 2019, as despesas somaram mais de 18 bilhões de reais, semelhante ao valor das receitas, com boa parte direcionada à folha de pagamentos — nos últimos anos, um plano de demissão voluntária reduziu em 11.000 o quadro de funcionários.
O ano passado foi de lucro líquido: 102 milhões de reais. Foi o terceiro ano de lucros, após quatro de prejuízos. Apenas nos balanços de 2015 e 2016 os prejuízos somados chegaram a 3,7 bilhões de reais. Hoje, o déficit acumulado é de 2,4 bilhões de reais.
A BDO RCS Auditores Independentes, de Brasília, contratada para fazer a análise das demonstrações financeiras da estatal no ano passado, declarou haver incertezas quanto à possibilidade de continuidade operacional do negócio, devido a “prejuízos acumulados e elevados custos assistenciais e previdenciários com seus funcionários”. Na tentativa de conter a sangria, a estatal anunciou no ano passado o fechamento de 161 agências. “Sem uma política de revisão de gastos e aumento das receitas, uma companhia nessa situação corre sérios riscos operacionais”, diz Leonardo Dell’Orso, sócio da consultoria PwC Brasil.
Centro de distribuição de encomendas dos Correios no Rio de Janeiro: agilidade não é uma das características da estatal - Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil |
Essas são as dificuldades que estão no balanço da estatal e são de conhecimento público. O maior problema, no entanto, é o que não está aparente. Há uma desconfiança generalizada de que o real passivo da empresa seja muito maior. Até auditores experientes não conseguiram avaliar o tamanho da dívida.
Nas demonstrações financeiras de 2019, a BDO fez ressalvas a esse respeito em seu relatório e, embora tenha aprovado o balanço, alegou não ser possível verificar o montante real do passivo contingente, que é relacionado a ações na Justiça por questões trabalhistas, cíveis, tributárias e criminais. “Nossos procedimentos de auditoria revelaram diversas inconsistências nos critérios de reconhecimento dos processos judiciais, bem como nos controles internos”, relatou a BDO. Uma estimativa do Tribunal Superior do Trabalho de setembro deste ano relaciona cerca de 6.800 processos judiciais envolvendo a empresa.
Outra fonte de incertezas quanto ao futuro dos Correios é relacionada ao fundo de pensão dos funcionários, o Postalis, cuja dívida é de cerca de 12,6 bilhões de reais. Como a estatal é mantenedora do fundo, ela tem responsabilidade por lei sobre metade desse déficit (a outra metade cabe aos beneficiários do fundo).
Parte da dívida, correspondente a 5,6 bilhões de reais, começou a ser equacionada em 2012, com prazo de quitação até 2038. Falta ainda decidir o que fazer com os outros 7 bilhões do passivo, cujo pagamento representaria um peso ainda maior para os pensionistas e para a empresa. Segundo o Postalis, o pagamento pode se tornar até vitalício. E a empresa que eventualmente comprar os Correios provavelmente teria de arcar com esse custo, caso a modelagem da venda da estatal não apresente outras soluções para esse passivo. Uma das opções seria transferir a dívida para a União ou criar uma empresa com essa finalidade para administrar. Essas questões serão definidas nos estudos de modelagem econômica da privatização dos Correios, encomendados pelo BNDES para o consórcio formado pela Accenture e escritórios de advocacia. “Uma das partes mais complexas deverá ser o levantamento total dos passivos, com as devidas comprovações das dívidas”, diz Leonardo Cabral, diretor de privatizações do BNDES. As análises devem ficar prontas até o final de 2021, o que automaticamente faz com que a privatização fique para 2022.
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Nesse processo, também ficará mais claro o impacto da corrupção nas contas dos Correios, cujos escândalos passaram a ser frequentes desde o final da década de 1990. Em 2005, a estatal esteve no epicentro do escândalo do Mensalão, que envolveu fraudes em licitações da estatal com a participação de políticos. Desde então, muitos outros emergiram — o último, detectado há dois meses, aponta roubos da ordem de 94 milhões de reais no subfaturamento da postagem de encomendas. Uma das principais explicações para o imenso déficit do Postalis são justamente fraudes cometidas ao longo dos anos. Um dos piores casos ocorreu em 2014, quando o fundo foi alvo de uma fraude de 250 milhões de reais pela compra irregular de títulos da dívida pública da Venezuela e da Argentina. Em 2016, a Operação Greenfield, da Polícia Federal, identificou crimes de lavagem de dinheiro e recebimento de propinas na aquisição de títulos imobiliários, com envolvimento de diretores do Postalis.
A malandragem chegou a tal ponto que os gestores começaram a lançar ativos podres no balanço do fundo para deixá-lo mais bonito. A manobra contábil e os seguidos casos de corrupção provocaram uma intervenção da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) no fundo entre 2017 e 2019. Apesar da intervenção, esqueletos continuaram a surgir. Em agosto deste ano, o Ministério Público Federal descobriu um esquema de desvios de recursos da ordem de 45 milhões de fundos de investimento que recebiam aportes do Postalis entre 2010 e 2015. Os Correios disseram, em nota, que contribuíam para as investigações. Com todos os rolos em que a estatal se meteu nos últimos anos, fechar essa conta, com base no cálculo real do passivo e outros elementos, como a percepção do valor da empresa pelo mercado, não será nada fácil. “Análises com esse grau de complexidade podem levar um ano mesmo para ser concluídas”, diz Dell’Orso, da PwC Brasil.
Todas as indefinições afetam diretamente o futuro dos Correios. Afinal, quanto vale a estatal? Para o governo, o preço é de 15 bilhões de reais, ou cerca de 2,7 bilhões de dólares. Já para a Associação dos Profissionais dos Correios passa de 60 bilhões de dólares. “A empresa vale tanto quanto o Mercado Livre, já que ambos fazem entregas e os Correios têm uma grande capilaridade”, disse Marcos César Alves, vice-presidente da associação.
O Mercado Livre, empresa mais valiosa da América Latina, preferiu não se pronunciar em relação à comparação com os Correios. Mas os números mostram que a atuação do gigante latino-americano de comércio eletrônico é muito diferente dos negócios da estatal. A primeira é bastante óbvia: enquanto os Correios apenas entregam, o Mercado Livre é uma plataforma de comercialização de produtos que opera em 18 países. No auge da pandemia, a empresa conseguiu expandir sua atuação: de abril a junho, foram vendidos 1 milhão de itens por dia, o dobro de 2019. Outra diferença é o tamanho da empresa. Ao todo, a companhia tem quase 13.000 funcionários na América Latina, 14% do atual quadro dos Correios (no Brasil, 3.731 pessoas). Em 2019, a companhia registrou lucro bruto de mais de 1 bilhão de dólares (equivalente a cerca de 5,6 bilhões de reais), valor cerca de 60% superior ao registrado no ano anterior. Já o lucro bruto dos Correios foi de cerca de 2,2 bilhões de reais em 2019, cerca de 8% mais do obtido em 2018. No Brasil, o Mercado Livre tem planos de investir 4 bilhões de reais diante da competição crescente no setor — já a estatal não tem nem de longe recursos para aportes dessa magnitude.
Apesar das imensas dificuldades, ninguém discute que os Correios têm seu valor. Talvez o maior deles seja sua capilaridade, pois a estatal está presente na maioria das cidades brasileiras. E, em cerca de 30% dos municípios, as agências dos Correios representam uma das poucas formas de acesso ao sistema bancário, já que elas realizam operações como saques e depósitos para correntistas do Banco do Brasil e outras instituições financeiras autorizadas. É verdade que a última greve, que durou 35 dias, só piorou a imagem dos Correios perante a população.
Uma pesquisa EXAME/IDEIA com 1.235 pessoas, entre os dias 24 e 31 de agosto (logo, com a greve em curso), mostrou que 40% dos brasileiros apoiam a privatização dos Correios — percentual muito superior em relação aos que apoiam a venda da Petrobras, 28%, ou da Caixa, 22%. As empresas que utilizam os serviços de logística dos Correios também passaram a procurar alternativas para as entregas. Com as lojas físicas fechadas em muitas cidades, por causa da pandemia, as compras online dispararam, e as entregas nunca cresceram tanto.
Os grandes marketplaces já vinham turbinando seu sistema de logística, contando cada vez menos com os Correios. O Magazine Luiza, apontado como um dos interessados na compra da estatal (junto com FedEx, Amazon e DHL), realiza hoje 80% das entregas das compras online por meio de parceiros, em geral startups especializadas em logística. A empresa não se pronuncia sobre a privatização, mas diz que a agilidade é cada vez mais fundamental para o crescimento dos marketplaces.
“Inconstâncias nos serviços de logística, com quedas na qualidade e atrasos causados por problemas operacionais ou greves, representam um risco sério”, diz Luiz Fernando Kfouri, diretor de logística do Magazine Luiza. A empresa já consegue fazer 60% das entregas em até 48 horas. Agora o objetivo é que 35% das compras feitas pelos clientes cheguem ao destino em 24 horas.
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Antes mesmo do surgimento do comércio eletrônico e de seu impacto nos serviços postais, estatais como os Correios vêm sendo colocadas em xeque no mundo todo. Um dos casos mais emblemáticos é o da Alemanha, que decidiu desestatizar o Deustche Budespost. O processo teve início na década de 1990. Na época, a estatal tinha mais de 450.000 funcionários e era uma das maiores empresas da Alemanha. Lá, o governo optou pela abertura de capital, em fases. Entre 1999 e 2005, mais de 60% das ações foram vendidas para o banco público KfW e o restante foi ofertado para investidores. Desde então, a empresa, que passou a se chamar Deustche Post, tornou-se uma das maiores operadoras de logística do mundo, com presença em 220 países e uma receita anual equivalente a mais de 275 bilhões de reais.
O Reino Unido optou por um caminho parecido. O ex-primeiro-ministro David Cameron decidiu desestatizar o Royal Mail em 2013, sob vaias dos funcionários da companhia. Os cerca de 150.000 empregados da estatal, fundada em 1516, entraram em greve logo após o anúncio da privatização e pararam boa parte do serviço. Mesmo assim, a privatização foi em frente, e no final de 2013 as ações do correio Real foram ofertadas ao mercado. Já nos Estados Unidos a estatal de entregas, a United States Postal Service, encontra-se em uma situação parecida com a dos Correios no Brasil. No ano passado, o déficit chegou a mais de 6 bilhões de dólares, em seis anos seguidos de prejuízo. O presidente Donald Trump já disse que o serviço precisaria ser privatizado, mas a venda da empresa, caso aprovada pelo Congresso americano, vai ficar para o próximo mandato ou para seu sucessor.
Por aqui, o prazo para a privatização dos Correios ainda é incerto. O projeto de lei de venda da estatal, já desenhado pelo Ministério das Comunicações, aguarda que o presidente Jair Bolsonaro o encaminhe ao Congresso — o que não havia acontecido até o fechamento desta edição da EXAME. Apesar de a estatal encabeçar a lista de privatizações do governo, o processo deve ser demorado. “O processo de privatização traz uma discussão sobre como vamos modernizar o setor postal no Brasil, o que exige debates aprofundados”, diz o ministro Fábio Farias (leia a entrevista aqui). “Será definido, por exemplo, se a empresa que assumir a operação poderá terceirizar o serviço em algumas praças.”
No estudo de modelagem econômica conduzidos no BNDES, além dos esqueletos no armário, há muita coisa em jogo. Estão sendo discutidos diferentes formatos, como a venda da companhia fatiada por região, uma abertura de capital, um programa de concessão ou a venda da empresa como um todo. “A universalização do serviço certamente continua”, diz Diogo Mac Cord, secretário de Desestatização do Ministério da Economia. Também será elaborado um novo marco regulatório do setor, que passará por discussão e aprovação no Congresso. “Estamos partindo praticamente do zero porque o setor postal nunca passou por esse tipo de mudança no país, não é como os aeroportos ou outras desestatizações de infraestrutura que já têm um modelo predefinido”, diz Cabral, do BNDES.
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Hoje, o Brasil tem 200 estatais federais e, quando uma empresa da União perde a capacidade de arcar com seus próprios custos, ela pode se tornar dependente do Tesouro Nacional, que faz aportes para cobrir as despesas. Hoje, 18 estatais já estão nessa situação. O Tesouro deve direcionar neste ano recursos da ordem de 21,5 bilhões de reais para essas empresas deficitárias. Uma delas é a Empresa Brasil de Comunicação, que tem uma rede de rádios e TVs públicas. A Valec, de construção de ferrovias, é outra que está no vermelho. Na lista de privatizações do governo, estão o Porto de Santos e a Companhia de Docas do Espírito Santo, a Codesa. A primeira fase dos estudos de modelagem econômica da venda da Codesa já foi concluída e enviada ao governo. A expectativa é que até o início de dezembro seja aberto o processo de consulta pública, para que, em seguida, seja realizado o leilão da estatal.
A privatização do Porto de Santos vem sendo tocada pelo Ministério da Infraestrutura em conjunto com o BNDES. Os estudos já começaram e espera-se que até 2022 a desestatização seja concretizada. Outras 11 empresas públicas com controle direto da União, entre elas a Serpro e a Dataprev, já entraram no plano de desestatização do governo. É fato que em quase dois anos do governo Bolsonaro nenhuma privatização foi efetivada (ocorreu, sim, a venda de ações de estatais que estavam em poder do Tesouro ou de bancos públicos) e o empresário Salim Mattar, que ingressou na vida pública para tocar o programa de desestatização de Bolsonaro, deixou o governo em agosto alegando a falta de vontade política do Congresso em fazer a agenda prosperar. A venda dos Correios vai se concretizar num futuro próximo? Talvez, mas saindo ou não a privatização, o país assistirá mais uma vez ao embate entre os interesses privados de parte do setor público versus as pressões de diferentes partes da sociedade em favor da modernização do Estado brasileiro. Por Carla Aranha, Exame.
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